Na capa do jornal A Tarde de terça-feira, 29 de abril, se podia ler o seguinte: “Procuram-se Capitães as Areia”. A chamada para o caderno “Dez!” desperta a atenção pela contradição existente entre a “busca” do jornal e a facilidade de encontrar os atuais “capitães da areia” dessa cidade. Estes já não se restringem a bairros como Vitória, Graça, Campo Grande ou ao cais e ao areal que havia na Cidade Baixa nos anos 30. De 1937 – quando Jorge Amado publicou o romance Capitães da Areia – até os dias de hoje, a cidade de Salvador cresceu e os meninos e meninas de rua, os “capitães da areia” se espalharam por ela. Tornaram-se, também, os capitães do asfalto e os capitães do semáforo. Conservaram da narração o título de capitães da sobrevivência. Mantiveram a parte dura das histórias dos personagens Pedro Bala, Dora e Sem-Pernas, a divertida se perdeu ao longo de sete décadas.
A matéria do “Dez!” falava do início da seleção do elenco para a gravação do filme Capitães da Areia. Somente um trecho do conjunto de matérias aponta para o viés social a que eu relacionei a chamada quando a li. O trecho é o seguinte:
“O livro Capitães da Areia, de Jorge Amado, começa com uma reportagem de um jornal da época sobre crianças que vivem nas ruas. O título é ‘Crianças ladronas’. No final, depois de uma declaração de um garoto rico que teria conhecido o chefe dos capitães da areia e o teria achado ‘parecido com um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras’, o autor da matéria se preocupa com as ilusões que o cinema andava colocando na cabeça das crianças.
No caso dessa adaptação, a intenção é justamente tratar de uma realidade que de 1937, ano em que o romance foi publicado, até os dias atuais só se agravou.
Na época do livro, a lei que tratava das crianças e adolescentes que cometiam infrações era o Código de Menores, de 1927. Ficava a cargo do juiz a decisão do que fazer com a criança. A alternativa era geralmente o reformatório.
Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente [1990], tenha garantido direitos e eliminado a possibilidade de o Estado agir arbitrariamente na vida das pessoas com menos de 18 anos, pouca coisa mudou para quem continua nas ruas. ‘Quero contar a essência dos problemas dos meninos de rua e como isso não mudou’, diz Cecília Amado. Para ela, esse é o modo de ser fiel ao livro como pedem os fãs no site da película”.
Veja - e se divirta com - uma adaptação da obra feita por garotos do Ensino Médio:
Segundo o advogado Henrique Mota Feitosa: “a partir da promulgação do primeiro Código de Menores, em 1927, foram criadas colônias correcionais para reabilitação de delinqüentes e internatos para o acolhimento de menores abandonados. Paralelamente a estas ações judiciais, desenvolveu-se, no país, uma política filantrópica com o objetivo de dar proteção aos menores abandonados. Na fase filantrópica a política de atendimento às crianças e adolescentes carentes era definida pelas senhoras de políticos ou membros da elite social”. Ainda segundo ele: “A nova legislação menorista em vigor desde 1990 veio a proteger, integralmente, a criança até 12 anos de idade e o adolescente entre 12 e 18 anos, e excepcionalmente, os menores na faixa etária entre 18 e 21 anos, assegurando-lhes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, que deverão ser respeitados, prioritariamente não só pela família, pela sociedade, como também pelo Estado, sob pena de responderem pelos danos causados”.
Confira uma reportagem do Jornal do SBT - SP sobre crianças que vivem nas ruas:
A infância marginalizada é freqüentemente utilizada como tema em obras literárias e cinematográficas em nosso país. Estas chamam a atenção para a situação de abandono e exclusão das crianças no Brasil. Capitães de Areia serviu de inspiração para Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1954), uma das obras fundadoras do moderno cinema brasileiro. Com Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1980), que o tema ganha ampla repercussão, colocando a questão no centro do debate político-cultural, chamando a atenção do público para a situação da infância. Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) retoma o tema. Mostrando de maneira dura e real a inserção das crianças no tráfico de drogas.
As gravações do filme Capitães da Areia começam no dia 10 de agosto. Mas para “assistir” aos reflexos da marginalização infantil em nossa cidade e em nosso país não é necessário esperar a estréia do filme no cinema, basta olhar através dos vidros do carro quando estiver parado no sinal. Reparar não nas "crianças ladronas", mas nas “crianças invisíveis”, faces ignotas que abordam diariamente os carros clamando por dinheiro, reflexos de uma sociedade opressora, lembretes do que a grande maioria tenta esquecer para seguir sua medíocre vida sem o menor remorso, vítimas do sistema capitalista e da indiferença dos detentores do capital.
É uma pena que hoje as crianças de rua não pareçam tanto com “um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras”. O conjunto de reportagens do “Caderno Dez!” trazia a seguinte frase: “Ainda dá tempo de ser um capitão da areia”. Alguém se candidata?
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